Manuel Cabanas

Vila Nova de Cacela.

O Tomé percorre as ruas em busca de memórias de infância. Eu acompanho-o, não conheço a terra dos seus avós. Lugares como “Beco do Buraco” ou “Fonte Santa” são-me totalmente desconhecidos. A vila é pouco mais do que uma aldeia e aquilo a que o Tomé chama a “Avenida” dá-me vontade de rir por ser tão pequena. Laranjeiras de um lado e do outro. Cheira a Algarve.

A “Avenida” desemboca num largo quase vazio. O Tomé aponta para um busto de uma dignidade feroz que domina o pequeno largo, como um guerreiro a defender as suas hostes invisíveis.

“O meu primo Manuel Cabanas.” – explica, mas os meus olhos já estão lá atrás, na nuca, a apalpar o bronze.

“Bossy”. A assinatura de Diamantina Negrão.

Lembrei-me que alguém me tinha falado da amizade de Diamantina com o também artista Manuel Cabanas. Ambos viveram no Barreiro, ambos eram algarvios, ambos partilhavam as mesmas ideias políticas. No entanto, eu estava longe de imaginar que iria encontrar uma escultura assinada por “Bossy” em Vila Nova de Cacela. Perto das laranjeiras da pequena “Avenida”.

De repente, o largo tornara-se grande. À minha frente havia dois artistas, duas personalidades marcantes: o esculpido e a escultora. O bronze unia-os num segredo antigo. Era como se uma voz me dissesse, num sussurro: “Há palavras agarradas ao bronze. Falam de liberdade e de outras coisas. Mas a liberdade é a palavra mais perigosa.”


Mamy

"A Mamy deixou a sua marca no tempo e no lugar onde viveu, e em todos aqueles cuja existência ela tocou. Alguns preferiram levar consigo para a eternidade segredos demasiado dolorosos, intensos ou incompreensíveis, em vez de os revelar aos que vieram mais tarde. Penso que alguém do passado da Mamy sufocou em segredos partilhados, os quais, se revelados, teriam o poder de modificar os seus últimos anos, mas perene ela ficara... Por vezes até sinto saudade das suas tiradas histéricas, mas na lembrança da sua ira ouço o silêncio que a sociedade lhe dedicou durante a sua vida, o seu grito primordial "estou aqui, e tenho algo a dizer!" ... O eco da sua ausência, as imagens estáticas da sua arte religiosa, retratos abstractos, delineados em negro, os seus azulejos repletos de história e poesia, os seus poemas religiosos em que, aos quinze anos de idade, eu li erotismo, na minha ignorância de amor. O que é que eu sabia acerca de amor? Eu sabia de guerra e conflitos intercontinentais, acções negando palavras e sorrisos repletos de lágrimas. Mas a vida é algo mais do que os nossos olhos vêem e as convenções permitem... "

Rosário Teixeira

Rosário Teixeira

Descubro na internet uma agradável referência a Diamantina Negrão:

“Rosário Teixeira is a surrealist painter and writer. She grew up in Europe, and survived childhood under a fascist dictatorship, during the colonial war in Africa. Of Jewish ancestry on her mother's side, she lived in a Catholic country where there was no freedom of religion, where women lost their right to vote and inherit property. She had a very strict Christian upbringing riddled with conflict and absurdity that permeated the core of society. All things considered, she could only become a surrealist painter. Painting is her passion, but writing is her survival.

Her first art teacher was her educator Diamantina Barreto Negrão, an excommunicated Mother Superior from the Religious Order Carmelitas Descalças (Barefoot Carmelitas). Poet, writer and philosopher, more than painting techniques, she taught Rosário the technique of "spiritual survival," the meaning of freedom beyond the confines of the society where they lived. Rosário studied art at the Academia Francesa under Auriete Martins, Kira, and A. D'Almeida. She studied Design at the University of Lisbon School of Fine Arts, and she has a degree in Human Services from the University of Massachusetts. “

(http://www.tribespek.homestead.com/CPBios.html)


No dia 1 de Junho de 2006 enviei um e-mail a Rosário Teixeira a pedir-lhe informações e recebi esta resposta:

Cara Susana Sousa:

Será um prazer falar da minha experiência com a Mamy. A minha mãe contactou Diamantina Barreto Negrão para me ensinar Inglês, mas esse foi o início de uma relação longa e complicada durante a qual eu não aprendi Inglês :)

Estou curiosa de saber que outras pessoas entrevistou... Há véus que encobrem outros véus que se abrem para descobrir outros véus...

Rosario Teixeira

A partir daí, temos comunicado regularmente por e-mail. Descubro que a Rosário conhece uma faceta admirável de Diamantina Negrão e não gostaria de de terminar este documentário sem entrevistá-la. O único problema é que a Rosário vive em Boston.

Artide Quatro

Publicado em 1996, o livro que inicialmente se chamou "Fuga e Tempestade" é o último testemunho de Diamantina Negrão (Bossy). "Artide Quatro" é um poema de extrema beleza, um êxtase visual e espiritual, onde se fundem luz e trevas.

"Eu tinha de encontrar
a fuga e a tempestade
escombros de um mal
que sucedeu
na parceria
de uma miragem"

É o derradeiro Cântico de Bossy.




Laura Dâmaso




Ouvi falar de um homem que conduzia Diamantina numa trotinete. Já não era vivo, mas a sua mulher, Laura Dâmaso, recebeu-me. Tal como o marido, tinha trabalhado na casa de Diamantina, depois do seu período no Barreiro.

Laura Dâmaso recorda os acontecimentos que levaram à extinção do Convento da Orada. Lembra-se de ter vindo a cavalaria de Faro, para expulsar as freiras. Corria o rumor de que a Madre tinha dito que “só saía dali em postas”.

No final da vida, Diamantina pediu a Laura que a fosse visitar, possivelmente com a intenção de lhe legar os seus bens. Mas Laura não a foi ver, e quando Diamantina acabou por morrer, o décimo quarto testamento visava outra pessoa.

Laura Brás



A professora Laura Brás viveu no palco a vida de Diamantina Negrão na peça de Luísa Monteiro “Bossy – A Física e Química de Deus”.

Na altura em que surgiu o convite, Laura atravessava uma fase crítica da sua vida, e achou que não seria capaz de aceitar o desafio. No entanto, apoiada pelos colegas, conseguiu entrar aos poucos na pele de Diamantina Negrão.

“Esqueci-me de tudo.... Eu era Diamantina Negrão...”

Fascinada pela personalidade intensa de Diamantina, Laura agarrou-se à própria vida e reencontrou-se a si mesma. Hoje, agradece à escritora e encenadora Luísa Monteiro esta oportunidade maravilhosa. Também gostaria de agradecer a Diamantina Negrão.

Luísa Monteiro






Em 2002, a escritora Luísa Monteiro leva à cena uma peça sobre Diamantina Negrão, intitulada “Bossy – A Física e Química de Deus” e interpretada por um grupo de professores da Escola EB 2-3 Prof.ª Diamantina Negrão. A peça retrata a vida de Diamantina, com especial enfoque nos finais da década de 40, em que Diamantina viveu no Convento da Orada, fundado por si.

Quando a entrevistei, Luísa Monteiro relatou pormenorizadamente o percurso de Diamantina Negrão, desde a sua dolorosa infância, passando pelas dificuldades no convento, pela prisão, pelas aventuras fora do país, até à sua morte solitária num hospital. Também lhe traçou o perfil, com tanta precisão como se fossem amigas há muitos anos, apesar de nunca se terem conhecido. Aliás, no dia em que Luísa Monteiro decidiu telefonar a Diamantina, ela tinha acabado de falecer.

Para Luísa Monteiro, Diamantina é uma mulher apaixonante, “uma mulher a quem o tempo e o espaço em que viveu não serviram para o seu desassossego místico e intelectual.” Uma mulher viajada, com ideias novas, muito diferente da população de Albufeira daquela época. Quando tinha conflitos por resolver, Diamantina regressava a eles. Por isso, o regresso a Albufeira foi uma espécie de auto-crucificação. “Viver foi uma espécie de morte”.

Querida Luísa, esperamos ansiosamente pela publicação da biografia de Diamantina Negrão.

Ficcionada?

Dilita Barreto




Prima de Diamantina, a minha avó Dilita relata alguns episódios que só a família conhece. Na sua infância, Diamantina fugia constantemente de casa, e acabavam por encontrá-la nalguma igreja, com os pés ensanguentados. “Para fazer sacrifício. Para ganhar o Céu”. A mãe andava constantemente à sua procura e as discussões abundavam.

Mas não era só nas igrejas que procurava o divino. Também se escapulia na praia, subia os cerros e ficava naquela solidão, frente ao mar, com a Várzea da Orada por trás de si. A mesma várzea onde viria a construir o convento.

Dilita também recorda as diligências de Diamantina para conseguir fazer o convento. Lembra-se que ela se deslocava ao Norte e trazia esmolas de pessoas ricas da região.

Mais tarde, Diamantina faria um colégio no lugar do extinto convento. Muitas pessoas de Albufeira estudaram nesse colégio.

Arménio Aleluia Martins




O Director do jornal “A Avezinha”, tal como muitos jovens de Albufeira, frequentou o Colégio da Orada. Nessa época, Diamantina Negrão encarnava a figura de mulher-guerreira, temida e admirada. Uma mulher capaz de enfrentar as autoridades.

Segundo Arménio Aleluia Martins, o colégio era pequeno, com cerca de cinquenta alunos, e como era deslocado da vila, os jovens juntavam-se no caminho, formando uma alegre caravana.

Sem esquecer a mulher-guerreira, Arménio Aleluia Martins foi responsável por conduzir a jornalista Luísa Monteiro na direcção de Diamantina Negrão, quando esta lhe manifestou interesse em elaborar um projecto sobre mulheres ilustres de Albufeira. Era o início de uma relação de amor, que se concretizou no trabalho de escrita e encenação de uma peça sobre a vida de Diamantina Negrão, e que talvez culmine na biografia da mulher-guerreira.

Felismena Pinto




Em 2006 retorno ao documentário. Ao rever a entrevista de Diamantina, sinto que lhe devo qualquer coisa.

Começo pela escola. Pelo nome da escola. EB 2-3 Prof.ª Diamantina Negrão. É a forma de Felismena Pinto recordar a grande pedagoga todos os dias.

A escola tinha por designação ”a número três de Albufeira”. Como números são coisas impessoais, era urgente encontrar um vulto de referência. Para a directora da escola, Diamantina Negrão afigurava-se como o melhor patrono, pois foi a primeira pessoa que se interessou pela continuação dos estudos das crianças de Albufeira.

Segundo Felismena Pinto, quando Diamantina informou o Bispo que pretendia abrir um colégio para meninos e meninas pobres no local do extinto convento, ouviu como resposta: “às meninas não se ensina a ler e a escrever, ensina-se costura”.

Mais de meio século depois, o ensino homenageia a mulher que soube enfrentar as autoridades em prol do conhecimento, através da designação da escola e de outras actividades, como a peça de teatro “Bossy: A Física e Química de Deus”, escrita e encenada por Luísa Monteiro e interpretada por professores da EB 2-3 Prof.ª Diamantina Negrão.

Irmã Ângela


Não figura no documentário, mas devo mencioná-la. Companheira de Diamantina Negrão, recusa partilhar o passado que as unia e que as desuniu.

As suas lembranças são tristes. Traça um retrato demasiado negativo de Diamantina Negrão.

Como as emoções tristes são pesadas, também sucumbo ao peso negativo do passado e retiro-me.

O meu retiro demora oito anos
.

O Carmelo do Coração de Jesus

Visitei o Carmelo do Coração de Jesus, no Estoril. Com apenas 21 anos, Diamantina Negrão adoptou o hábito de freira e ingressou na Ordem das Carmelitas Descalças, nesse carmelo.

Mais de meio século volvido desde o dia em que Diamantina saiu do Estoril, nesse convento apenas restavam duas freiras que a conheciam. A Madre, que me recebeu por detrás de uma grade de ferro, explicou que nenhuma das duas estava em condições de falar. A própria Madre não a conhecera, pelo que não se justificava fazer uma entrevista.

Por baixo da grade de ferro, vi surgir duas folhas de papel, que aqui reproduzo.



Manuel Ataíde



Corre o ano de 1998. Diamantina ainda está viva. Ouço dizer que um senhor meu conhecido sabe histórias do passado, histórias que Diamantina não aflorou na entrevista, e procuro-o.

Manuel Ataíde tem vários caderninhos onde as histórias de Albufeira se entrelaçam com as suas considerações sobre os acontecimentos. Um dos cadernos é dedicado à Igreja da Nossa Senhora da Orada e ao Convento das Carmelitas Descalças.

Amigo e confidente de Diamantina Negrão, Manuel Ataíde hesitou antes de começar a relatar “os escândalos”. O Menino Jesus em cima da cabana do cão é apenas um entre muitos episódios que ficaram para a posteridade.

Segundo Manuel Ataíde, as alterações que as carmelitas efectuaram na Capela desagradaram a população. Uma vez, a Nossa Senhora da Orada estava de costas voltadas para o povo. Outra vez, estava mascarada... Também era comum os paramentos desaparecerem. E a Madre não dava justificações...

Durante a entrevista, o telefone tocou, e Manuel Ataíde disse de imediato: "É ela". De facto, raro era o dia em que Diamantina, no final da sua vida, não procurava consolo naquele amigo que, apesar de lhe reconhecer certas iniquidades, lhe prestava atenções e cuidados.

No final da entrevista, prometi a Manuel Ataíde que nada seria revelado enquanto Diamantina fosse viva.

Pouco tempo depois, Diamantina viria a falecer.

A entrevista a Diamantina Negrão

Diamantina olhou com estranheza para a câmara e para o tripé. Parecia desconfiar da máquina, ou talvez não compreendesse bem as potencialidades daquela coisa feia e preta, tão diferente da substância macia de um gesso, da brancura da tela ou do papel. E, no entanto, eu estava a esculpi-la, a desenhá-la, a escrevê-la.



Primeiros passos...

A minha avó Dilita ofereceu-se para me acompanhar à casa de Diamantina. Situada junto à Capela da Orada, a casa tinha uma entrada digna de um bairro de lata: tijolos em bruto formavam a escada de acesso ao edifício. A escada original tinha sido destruída e não fora reposta. Era o primeiro traço que me era dado vislumbrar da guerra de Diamantina com a Igreja.

Uma vez lá dentro, parecia que tínhamos entrado num universo de conto de fadas...




De uma sala para a outra, era preciso avançar devagar, abrir uma porta e fechá-la atrás de nós, antes de prosseguir, para que os cães e os gatos não se escapassem e não se misturassem – havia várias hierarquias, uns não podiam socializar com outros, com o risco de grandes guerras.

Uma casa habitada pelos animais... Diamantina tinha por companhia esse seres protectores, que não magoam quem os acolhe. O odor, esse, magoava-nos, mas não a ela, pois já não se dava conta de muitas das coisas que não pertenciam ao reino do espírito. Tivemos que evadir-nos. Éramos estranhos naquela casa e o próprio ar nos rejeitava. Diamantina condenara-se à solidão.

De volta às primeiras divisões, Diamantina mostrou com orgulho uma pequena sala que era a sua biblioteca e escritório. Dias mais tarde, aquela divisão seria destruída pelo fogo. Os livros não são bronzes, e seriam os primeiros a ceder às chamas.

Decidi voltar, e quando voltasse traria um instrumento que me permitisse resgatar a memória de Diamantina, iludir o tempo e, de certa forma, eternizar aquela mulher.

O início...

Vi-a pela primeira vez na sessão de lançamento do seu último livro. Tinha a curiosidade aguçada pelas velhas histórias de família em que rumores de uma prima freira e artista tomavam contornos de lenda. A minha avó Dilita referia-se a ela como “Diamantina freira” e, embora eu já soubesse que essa prima tinha perdido o direito ao hábito, ainda estava à espera de encontrá-la com as suas vestes carmelitas.

Era uma mulher velha, de olhos azuis, encovados, e pareceu-me distante, embora sorrisse para as pessoas. Quando abri aquele livro de capa branca e traço negro, uma onda de musicalidade, enigmática e de extrema beleza, envolveu-me como um manto e fiquei alheada de tudo.

“Eu tinha de encontrar / o cântico da luz...”

Na mesa, junto a Diamantina, alguém falava, e eu tinha que deixar de ouvir a voz do poema...

“Ruas de vidro / E caminhos de bronze / Onde a lágrima vertida / Quebrou o seu rosto.”

Fechei o livro e verifiquei que o próprio título soava a mistério: uma palavra inexistente no dicionário português: “Artide”, e o pitagórico número da perfeição: ”Quatro”.

Artide Quatro.






Nessa altura, desejei conhecer a mulher por detrás daquelas palavras. Olhei para Diamantina e tentei avaliar a dimensão daquele ser que a velhice não conseguira curvar. Foi então que ela falou. Não falou de improviso, agarrou as páginas que tinha preparado para a sua audiência, e em breve pude sentir que a estávamos a perder. Os papéis do discurso baralharam-se e na minha memória apenas ficou retida uma curta frase: “o mar da minha terra tem alma”.

Teria bastado esta frase para me fazer seguir o rasto daquela mulher. Estava longe de imaginar as histórias fantásticas que povoavam o imaginário dos albufeirenses e o calvário que teria pela frente ao remexer no passado. Ao longo do percurso eu iria cair e renegar o seu nome, para de novo me erguer e ansiar por um pouco da sua força, um pouco apenas, que me permitisse chegar algum lado.

Quando a sessão acabou, guardei o livro e decidi iniciar a minha busca.

Procurar sinais na areia




“Cada areia é um assunto.”

Diamantina Negrão destacou-se, quer nas artes, quer na vivência social e religiosa da sua terra – Albufeira. Causou polémicas e suscitou sentimentos contraditórios pelos excessos que a grandeza da sua alma não conseguia conter. Poetisa, ensaísta, escultora, pintora, professora, freira excomungada e divorciada – Diamantina deixou-nos um rasto simultaneamente luminoso e sombrio, restos do "deserto" da sua "estrela", uma poalha extensa a ambicionar a dureza fria e eterna do Cristal. Sem encontrar o equilíbrio entre as suas zonas de luz, sagradas, e a sua noite cerrada e profana, Diamantina vivia a contradição própria do humano no seu extremo (por vezes pernicioso).

No documentário “Diamantina Negrão – Cântico das Sombras”, partirei numa busca para a qual Diamantina me encaminhou por mão própria quando, por altura da apresentação do seu derradeiro livro, baralhou os papéis do discurso e perdeu o fio de um percurso onde vivência e obra se confundiam, animadas ambas por uma mística que culminava em Albufeira, frente ao mar.

“O Mar da minha terra tem alma” – diz a mulher que enfrentou o final da vida com uma caneta na mão, a tentar escrever a sua biografia: “Areias do Meu Deserto”. Obra que não terminou e que temia publicar. “Artide Quatro” ficaria como o último legado de Diamantina Negrão.

“A fronteira era o fim / Mas no fim não existe o nada. / No fim há sempre / Uma migalha.”

Quem é Diamantina Negrão?

Diamantina Barreto Negrão nasce em Albufeira, a 07 de Novembro de 1915. Aos 5 anos escreve a sua primeira carta e desde então a escrita torna-se a primeira de três paixões.

A segunda paixão não tarda a surgir. Diamantina desaparece com frequência e a mãe, Delfina Barreto Negrão, acaba por encontrá-la a rezar nalguma igreja, com os pés ensanguentados. Diamantina amava Cristo.

A relação entre mãe e filha degrada-se, ao ponto de um dia Diamantina fugir para um convento da Ordem das Carmelitas Descalças no Estoril. Aí, abandona o seu nome e passa a chamar-se Irmã Maria do Carmo do Coração de Jesus.

Menos de uma década depois, Diamantina regressa ao Algarve, com o objectivo de fundar um Convento em Albufeira. Torna-se a Madre mais jovem da Europa quando inaugura o Convento da Orada em 1944. Tinha apenas 29 anos.

No recolhimento daquele convento perto do mar, Diamantina dedica-se à escrita e publica mais de uma dezena de livros, entre poesia, ensaio e biografias. Contudo, defronta-se com grandes dificuldades e o Convento da Orada acaba por ter uma existência demasiado curta. Um Decreto papal ordena a extinção do convento e a excomunhão de Diamantina e das restantes freiras, a 19 de Agosto de 1948.

Quais os motivos para este acto tão dramático? Para a História ficou uma simples linha:

“ por razões imprevistas”

A população ainda hoje fala de escândalos e imoralidade, mas Diamantina teria confidenciado a alguns amigos outras razões para a extinção do convento: túneis que ligavam o convento à praia, reuniões secretas entre homens e uma mulher russa que parecia uma princesa, enfim, o planeamento de um golpe de Estado.

Algures, entre estas duas versões, encontraremos a verdade?

Em 1951, depois de ter vagueado por Espanha e pisado arenas, Diamantina regressa a Albufeira. Decide fundar nas instalações do extinto convento um colégio para crianças pobres. Para isso, obteve a ajuda de uma tia materna, Maria da Conceição Bossy Barreto, conhecida por Madame. A sua devoção por esta tia levaria a que, mais tarde, Diamantina passasse a assinar as suas obras com o pseudónimo Bossy.

Enquanto decorre a actividade no Colégio, sendo o ensino ministrado pelas freiras excomungadas e pela Tia Conceição, Diamantina inscreve-se na Faculdade de Letras, em Lisboa. Continua a utilizar as vestes carmelitas, como se pode ver no cartão de estudante
.

Quando o ensino público abre, Diamantina fecha o colégio e envereda pela carreira pedagógica. Dá aulas no Barreiro, em Beja, no Funchal e, finalmente, em Albufeira. Ao longo deste percurso, tira o curso de Belas Artes, casa-se e divorcia-se, é presa pela PIDE, pinta, escreve, acolhe cães e gatos, e descobre a sua terceira paixão: a escultura.

No final da vida, vive em solidão, numa casa que construiu junto à Igreja da Orada. Acaba por morrer no Hospital de Faro, a 14 de Janeiro de 1999.