Mensagem de Rosário Teixeira

Cara Susana,

Obrigada por ter feito este documentário, e pela oportunidade que me deu de o ver. É um poema incompleto... Ao ver e ouvir a Mamy uma vez mais, deixou-me muito emocionada.

Mais uma vez senti a crueldade do povo contra essa mulher, artista, educadora, que me ensinou a encontrar a liberdade através da arte e a sobreviver espiritualmente. Eu estive presente muitas vezes, quando as pessoas atravessaram a rua para não se enfrentarem com a Mamy...

Alguns comentários de Luisa Monteiro estão errados. A Mamy casou-se no Estoril onde teve o sonho de abrir o Atelier Goya... Conflitos com a cunhada, alguns relacionados com os fundos necessários para abrir o Atelier, levaram à dissolução do casamento.

O Ministério da Educação designou-a para a Madeira, onde esteve cerca de um ano ou dois. A Mamy adorou a Madeira, mas o Ministério da Educação enviou-a para o Barreiro. A Mamy falou da Madeira com saudade, do povo amigável e sereno, oposto ao povo de Albufeira e até do Norte.

A minha mãe contratou a Mamy para me ensinar Inglês, pouco depois de ela chegar ao Barreiro. Elas tornaram-se amigas e várias vezes por semana tomávamos o "Chá das 5" juntas. Foi durante tais sessões que a Mamy falou da sua vida. O que sei da vida da Mamy até essa época, ouvi nas suas narrações.

A Mamy tinha um "cavalheiro" poeta que a visitava de vez em quando, e ela também o visitava em Lisboa, contrário ao boato que ela era lésbica. Este poeta nao era o marido dela... ela estava divorciada do marido há bastante tempo. Quando o poeta a visitava, ela cancelava as minhas lições de Inglês, mas eu cheguei a vê-lo, um homem alto e misterioso. A Mamy vivia num mundo de ideias. Com a minha mae, ela podia falar de tudo e frequentemente iam à aventura para leilões de antiguidades, ao teatro... muitas vezes a minha mãe se esqueceu de mim até às 9 horas da noite, e eu sentada a porta de casa desde as 3 da tarde...

Várias pessoas neste documentário falam das suas excentricidades em relação ao padre da paróquia, que se considerava o líder espiritual das freiras, mas a Mamy recusou-lhe tal papel. Ele também queria controlar as financas do convento... Através da confissão de algumas freiras, o padre veio a saber que visitantes tinham entrado no convento. Ele divulgou tais visitas em violação ao ato de silêncio e declarou como conduta imoral. A realidade era muito diferente.

Sales Paiva, de acordo com o neto, Túlio, que tambem foi aluno da Mamy, deu um pedaço de terreno para a construção do convento. Apesar de ser considerado um homem hereje, a esposa era muito religiosa. Ele envolveu-se nos planos da construção civil... dois esgotos foram construidos a terminar na costa. Um dos esgotos terminava dentro de uma gruta com acesso só pelo mar. Através deste tunel, várias pessoas amigas de Sales Paiva entraram no convento, onde conduziram reuniões secretas planeando um golpe de estado.

A Mamy descreveu esses acontecimentos, "uma princesa Russa" e os seus companheiros que viajaram de barco vindos de Lisboa... O Túlio encontrou documentos num gabinete fechado que pertenceu ao avô, confirmando o que a Mamy relatou várias vezes durante o "Chá das 5." Ele tinha os documentos de prova que o avô esteve envolvido na preparação de um golpe de estado.

Com a publicidade criada pelo padre, as reuniões terminaram. Durante esse período, o Túlio disse que a Mamy dava-lhe lições de Inglês no palácio da Orada e a ultima vez que ela falou com o avô, eles tiveram uma discussao tremenda, ambos gesticularam muito...

De acordo com a Mamy e uma das freiras que eu conheci, que vivia em Albufeira, Judite, uma pintora de obras religiosas com muito talento, a Mamy angariou fundos para a construção do prédio com a venda de arte religiosa e os seus livros de poemas. Como freira, cada livro só podia ser publicado com a aprovação do Papa. De maneira a manter o convento e abrir a escola, a Mamy e as freiras continuaram a vender pinturas religiosas e livros. O seu último livro foi rejeitado pelo Papa...

Outra historia exagerada: uma das freiras que estava a lavar os vidros das janelas deitou a água suja para o patio e acabou em cima do padre.

Tambem ausente no documentário é o facto que a Mamy iniciou vários processos legais contra a Igreja. Entre outros, o José Pimenta, que veio a ser juiz em Portimão nos últimos anos da década de 70, investigou o processo, mas era demasiado complicado processar a Igreja Católica... Nos últimos anos 60 chegaram a um acordo em que a Mamy podia ocupar o Solar do Cerro até à sua morte. A Igreja continuava a reclamar posse da propriedade e a Mamy continuou a contestar...

Como educadora, a Mamy tentou defender a sua tese de doutoramento em pedagogia e foi rejeitada por todas as universidades no país, Lisboa, Coimbra e Porto, nos anos 70. As suas ideias eram demasiado avançadas e em contradição com a administração do país. A Mamy acreditava que educação universitária constituia educação básica e que as raparigas não deviam considerar casamento ou ter bebés antes de terminarem a sua educação básica, para que nao dependessem de um esposo. (Considere os decretos de lei das décadas 40 e 50, do regime de Salazar. As mulheres perderam o direito ao voto, a herança, 60% das escolas do pais fecharam, e a lei dos baldios proibiu o povo de usar terra comum nas municipalidades.)

Gostaria de ter visto imagens das suas esculturas, azulejos, e pinturas. A escola Álvaro Velho tinha várias das suas obras, incluindo a escultura de uma menina sentada no jardim, para a qual eu fui o modelo. A Mamy ensinou-me a processar e a pintar azulejos enquanto ela estava a trabalhar na obra que se encontra sobre a entrada principal da escola Álvaro Velho.

A Mamy sempre assinou o seu nome Diamantina Barreto Negrão em documentos e livros. Ela usou o nome Bossy nas suas pinturas e esculturas...

A minha mãe visitou-a em Albufeira na sua ultima viagem a Europa em '86, antes de morrer, e veio muito triste pela situacao da Mamy...

Mais uma vez, obrigada por este poema...

Um abraço

Rosário


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